terça-feira, 23 de setembro de 2008

Entrevista: Carla Barros e a revolução das LAN houses nas periferias

Há um novo ecossistema digital em formação, provavelmente a alguns quilômetros de distância de você, que envolve não apenas a popularização de redes sociais e games, mas também a centralização de serviços econômicos.

A explosão na popularidade das LAN houses pelas periferias do Brasil, documentada em 2007 por estudo do Núcleo de Informação e Coordenação (NIC.br), não apenas conduz a inclusão digital no país, mas também formula um ambiente ainda desconhecido para estudiosos e companhias.

Carla Barros, professora da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) do Rio de Janeiro, vem estudando o fenômeno das LAN houses em comunidades carentes dentro de Vila Canoas, comunidade carioca ao lado da Rocinha.

Nesta entrevista, Carla detalha a transformação de uma LAN house em um ecossistema ao redor do qual atividades econômicas da comunidade acontecem e critica a iniciativa "educacional" por trás de telecentros em áreas carentes.

No Digital Age 2.0 2008, a pesquisadorá participará do debate "Digital Frontier: Aprendizes do Século XXI", mediado por Marcelo Coutinho.

Que tipo de pesquisa sobre tecnologia você está conduzindo em comunidades carentes do Rio de Janeiro?

A pesquisa tenta fazer um mapeamento do uso de tecnologias digitais em camadas populares. O projeto é uma etnografia que tenta levantar todos os espaços públicos e privados onde as pessoas têm contato com informática.

Na prática, vou a telecentros e ONGs (onde há acesso gratuito à internet), LAN houses (onde há acesso pago) e entro na casa das pessoas e para ver onde o PC é colocado e quem o usa.

Desde agosto de 2007, escolhi (dentro da pesquisa feita na ESPM) estudar tecnologia e comecei a freqüentar uma comunidade chamada Vila Canoas, na Zona Sul do Rio de Janeiro, próxima à Rocinha e com mais ou menos 4,5 mil moradores.

A pesquisa etnográfica consiste em conviver com a comunidade o mais intensamente possível. Faço visitas semanais e um aluno meu que faz parte da comunidade me apresenta aos moradores para que eu entre em suas casas.

Nas LAN houses, me apresento e fico lá observando e fazendo entrevistas. Tem dia que chego lá e fico só na internet e olhando. Em outros, converso com as crianças.

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Existe algum tipo de perfil médio de uso que mais chamou sua atenção?


O que mais me surpreendeu foi uma familiaridade muito grande com vida digital, redes sociais e aprendizado do entendimento do jogo, a começar pela presença total do Orkut. Sabemos da importância do Orkut na classe média, mas lá pessoas de todas as idades têm perfil na rede.

Quando cheguei [à comunidade], um menino de 5 anos perguntou ao pai se eu tinha Orkut. Eu não tinha - eles devem ter achado que eu vim de outro planeta.

Em Duque de Caxias - onde Carla fez um estudo semelhante anteriormente- havia cartazes de "fazemos seu Orkut" e "colocamos fotos no Orkut" como serviços nas LAN houses. Em Canoas, não há cobrança, é mais coisa de amizade.

Em camadas populares, o virtual serve para reinforçar os vínculos reais. Logo, o Orkut é usado para achar parentes distantes ou falar com parentes que foram morar fora. O uso do Orkut é um modo de disseminação e reconhecimento da comunidade. A rede social é o primeiro módulo em que a pessoa entra na vida digital, em uma espécie porta de entrada para a internet.

Outra coisa que me chamou atenção foram os games. Canoas tem duas LAN houses e uma delas só tem um game de RPG (o dono escolheu não colocar jogos de tiro). Os meninos ficam no World of Warcraft (WOW), que é em inglês. É um ambiente de aprendizado coletivo muito grande. Todos aprendem muito porque ficam como em uma escola de games, interagindo muito no espaço da LAN. Se houvesse uma professora de inglês ali, teríamos um resultado (cognitivo) fantástico.

Percebe-se também que a LAN house é um espaço destes meninos para games durante o dia. Durante a noite, [o público se] diversifica, destacando-se tanto o uso do Orkut como do YouTube, muito popular especialmente para desenhos e clipes musicais.

O que mais fica claro após a convivência é que [os freqüentadores da LAN house] estão mais familiarizados do que podíamos imaginar [com o mundo digital]. Eles não querem ficar fora da vida digital de jeito nenhum. Se não vão à LAN house, vão às casas dos quem têm PCs (cerca de 30% dos moradores, já que Canoas não é miserável).

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Como é a audiência dos telecentros em regiões com muitas LAN
houses?

As máquinas do telecentro, geralmente ligadas a iniciativas de filantropia, são máquinas usadas que foram recicladas. O que um menino prefere? Ir a um telecentro enfrentar as restrições ou ir a uma LAN house e jogar WOW? É importante [para o público jovem] ter um equipamento legal.

Em alguns projetos de ONGs, não deixam usar MSN, redes sociais e games - tudo que eles gostam de fazer. Telecentros não são representativos porque não entenderam que não podem deixar de fora a diversão nem o lado lúdico. Em Canoas, pelo menos, não temos máquinas, só discursos.

A iniciativa por trás dos telecentros é errada, então?

A estratégia é falha. Citaria uma iniciativa de uma escola pública do Rio de Janeiro, cujo projeto original começou no Recife, em que crianças aprendem no turno da tarde a fazer games. É algo fantástico. Uma iniciativa que deveria ser replicada em todos os ambientes educacionais brasileiros. A atual política dos telecentros está totalmente equivocada.

Qual o papel que as LAN
houses representam dentro das comunidades carentes?

Além do acesso, vejo outras coisas interessantes que têm a ver com alimento da economia. Um dono de LAN house, por exemplo, "empresta" seu cartão de crédito para que clientes façam compras pela internet, como uma passagem de avião.

O dono pode dividir em várias prestações, algo incrível para o aquecimento de comércio local. Há casos também de pizzarias que não têm site, mas o dono da LAN house recebe pedidos por e-mail, anota e os repassa pedidos para o restaurante, que faz a entrega.

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De certa maneira, há um ecossistema em formação ao redor das LAN houses?


É claro que isto não vai ser generalizado para todos os lugares. O que se pode dizer é que as pessoas perceberam que a LAN house é uma abertura do mundo onde elas podem ter acesso ao que não poderiam normalmente.

Eu posso comprar acesso a um bem ou serviço que já está acontecendo. A LAN house é algo muito local, virou um clube onde a intimidade (com o responsável) envolve negociações comerciais.

A comunidade aprova a presença de LAN houses?

Curiosamente, a maioria dos pais não gosta muito de LAN houses e admitem que a economia para comprar um PC foi um jeito de trazer o filho para casa. A comunidade de Canoas não é violenta e não tem tráfico ostensivo de drogas. Ainda assim, os pais querem ver seus filhos em casa.

Por um lado, há o discurso de LAN house como bagunça. Por outro lado, muitos dos pais gostam dos filhos ali. Um deles me falou que sua mãe preferia que ele ficasse ali que "na rua fazendo bobagem". Estas LAN houses não são ambientes com palavrões, têm apenas brincadeiras normais de moleques.

Há muitos pais com o discurso de "LAN house não, você fica em casa" e outro bem mais produtivo. Entre as mães que apóiam esta conduta, a LAN house é uma espécie de clube que, se o filho tiver feito o dever da escola, não há problema em freqüentar.

Como é a infra-estrutura daqueles que têm PC e web em casa?


Ah, a Casas Bahia é onipresente em Canoas. Percebem-se muitos PCs comprados em grandes lojas de varejo, com configurações bem simples, alguns com Linux. Já a banda larga por ali é a "banda gato".

Fonte: IDG Now!

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