sábado, 20 de dezembro de 2008

Cientistas usam 'disfarces' de parasita contra giardíase

Se você volta de uma viagem ao exterior e apresenta vômitos fortes, flatulência barulhenta, arrotos sulfúricos e diarréia explosiva, a má notícia é que você não vai morrer. É só um ataque de giardíase, uma forma de purgatório criada por um parasita unicelular conhecido como giárdia.

Infecções por giárdia podem se arrastar durante meses, pois o parasita é resistente ao sistema imunológico do corpo. Em seu guarda-roupa genômico, ela tem 190 capas para escolher. Assim que o sistema imunológico gera anticorpos contra uma capa, a giárdia a troca por outra. Devido à persistência e à facilidade de contaminação do parasita, 280 milhões de casos de giardíase ocorrem no mundo a cada ano, segundo estimativas da Organização Mundial de Saúde. A maioria desses casos está concentrada em países em desenvolvimento, onde as pessoas estão mais habituadas à doença.

No entanto, o jogo ofensivo da giárdia pode ter uma fraqueza fatal. Biólogos liderados por Hugo D. Lujan, da Universidade Católica de Córdoba, na Argentina, obtiveram esclarecimentos surpreendentes em relação ao estratagema da mudança de capas.

Com esse conhecimento, eles conseguiram realizar um contra-ataque: forçaram o parasita a produzir e usar todas as suas capas de proteína ao mesmo tempo. Eles esperam que esse parasita alterado sirva como a vacina ideal, pois imuniza de uma só vez o corpo contra o repertório completo de capas de proteínas da giárdia. A idéia funcionou bem em testes com animais, afirmou Lujan.

Ele acredita que a mesma abordagem geral – forçar expressões de todas as capas de proteínas simultaneamente – pode ajudar a produzir uma vacina contra outros parasitas protozoários que dependem da mudança de capas para driblar o sistema imunológico. Isso inclui a malária e os tripanossomos que causam doença do sono e Leishmaniose.

Revelado o segredo

Lujan e sua equipe identificaram o mecanismo pelo qual a giárdia controla suas capas de proteínas, conforme relataram na edição atual da publicação "Nature". Cada um dos genes das 190 capas do parasita é a receita para fabricar uma proteína diferente, e o parasita troca de capa a cada 10 gerações. Para produzir a capa, a giárdia não troca esses genes um de cada vez, como se espera. Em vez disso, ela aparenta deixar todos eles ativados, permitindo que cada um gere uma cópia de RNA mensageiro para si. Geralmente, o RNA mensageiro comanda a síntese das proteínas, mas a giárdia então destrói todos os mensageiros, com exceção de um, e o sobrevivente fabrica a capa do dia.

Para matar seus RNAs mensageiros, a giárdia adaptou um sistema celular antigo conhecido como interferência de RNA. O sistema é designado para destruir RNA estrangeiro, como os de vírus invasores, então foi surpreendente descobri-lo regulando os próprios RNAs das células, disse Lujan.

Ele provou que esse era o caso ao perturbar a produção de enzimas da giárdia, como aquelas conhecidas como Dicer e Argonaute, que são componentes do sistema de interferência de RNA. Com seus sistema de seleção de RNA sem funcionar, a giárdia produz muitas – Lujan acredita que provavelmente todas – as capas de proteínas do seu repertório e insere-as na cobertura externa.

Ele afirmou não conhecer ainda como o organismo troca de capa, mas suspeitou que o sistema de interferência de RNA favoreceu o RNA mensageiro que fosse mais abundante no momento, e destruiu os outros.

Em um experimento que ainda não foi publicado, Lujan realizou testes em roedores, os animais de laboratório mais usados em pesquisas sobre giárdia. Foi usada uma vacina que consistia somente em giárdia com seu sistema de interferência de RNA bloqueado. "Observamos uma proteção completa", ele disse.

Theodore E. Nash, especialista líder sobre giárdia do Instituto Nacional de Saúde, afirmou que o novo relatório era "um grande avanço nessa área". Desde 1979, Nash tem desenvolvido muitos dos métodos para o estudo da giárdia e sua mudança de capas, muitos dos quais foram usados por Lujan, que trabalhou por cinco anos no laboratório de Nash.

Outro especialista em giárdia, Rodney Adam, da Universidade do Arizona, afirmou que o trabalho de Lujan sobre o controle da giárdia sobre os genes era interessante, "mas não é tudo". Para produzir uma vacina, ele afirma que "esse não é um organismo em relação ao qual a infecção vai conferir imunidade". As pessoas em países em desenvolvimento pegam uma infecção após a outra, apesar de serem formas cada vez menos severas da doença.

Golpista similar

A malária também dribla o sistema imunológico ao trocar suas capas de proteína. Kirk Deitsch, especialista em genes de capa da malária do Weill Cornell Medical College, disse que a nova descoberta de Lujan "pode ser conceitualmente aplicável à malária", apesar de o parasita da malária não usar a interferência de RNA e de ninguém saber como fazê-lo mostrar seus 160 genes de capas de proteínas ao mesmo tempo.

Uma vacina humana para a giárdia seria um grande benefício se os vários casos suaves da doença no mundo em desenvolvimento realmente colocassem a saúde em risco. Alguns especialistas acreditam que a infecção persistente da giárdia causa má-nutrição, mas outros não estão tão seguros quanto a isso.

Para um número cada vez menor de ocidentais que não estão acostumados à doença, a vacina seria um acréscimo bem-vindo às poucas drogas disponíveis. Teria sido um presente dos céus para os cruzadistas, que, segundo relatos históricos, sofreram terrivelmente com uma variedade de doenças intestinais que não respeitavam hierarquia. Em 1249, o rei Luís IX, que liderou a Sétima Cruzada, teve uma diarréia tão séria que parte das calças do rei foi cortada para facilitar sua higiene pessoal. A giárdia pode ter sido a causa. Usando um teste imunológico altamente sensível, pesquisadores que escavaram uma latrina medieval na cidade de Acre, antiga região do reino cruzadista de Jerusalém, detectaram a presença de giárdia, conforme relatado na edição de julho do "The Journal of Archaeological Science".

A própria giárdia é mais antiga que qualquer reino cruzadista. Apesar de ser um organismo unicelular, pertence aos eucariontes, o domínio que inclui todas as plantas e animas. Na árvore da vida eucariota, a giárdia pertence a um dos ramos mais antigos. Ela não tem mitocôndria, organelas que produzem energia e são quase um crachá de identidade eucariota. Mais estranho ainda é saber que a célula da giárdia possui dois núcleos; ninguém sabe que benefícios compensam o custo de manter um segundo núcleo. Antes de esse enigmático micróbio assolar as pessoas, ele sem dúvida foi a aflição de muitas espécies anteriores. A descoberta de Lujan pode ser um passo crucial para conter o tormento impiedoso da giárdia de seus colegas eucariontes.

Fonte: G1

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