terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Medicina, tecnologia e o sonho de ter um filho

Casar, ter filhos, construir uma família.

Quando o sonho que orienta tantos casais esbarra na infertilidade, as alternativas da medicina e da tecnologia reprodutiva surgem como um caminho.

Mas, entre outros efeitos, a infertilidade pode gerar uma convivência contraditória para o casal, entre atitudes de escolha e submissão.

É a conclusão da pesquisadora Eliane Portes Vargas, do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz).

A pesquisadora estudou aspectos da dinâmica e da sexualidade conjugal de casais inférteis associados às tecnologias e aos recursos médicos utilizados na reprodução assistida.

Desejo e constrangimento

Segundo Eliane, tem havido uma transformação de valores que permite optar por não ter filhos.

Porém, na medida que a mulher quer e, involuntariamente, não consegue engravidar, cria-se um constrangimento.

"Causa muito incômodo para o casal não concretizar um desejo expresso por meio de uma decisão racional - uma escolha. A concepção de um filho, pela fala dos informantes, ainda que entendida como um processo 'natural', é sempre planejada, e o filho é considerado uma construção a dois, fruto de um processo decisório que fica no plano da vontade, sobre o qual há controle.

"Os atuais recursos médicos disponíveis e sua popularização nos estratos médios reforça esta ideia, pois torna este desejo possível. No entanto, na medida em que há um impedimento que foge ao controle de decisão, surgem as inquietações que acometem os casais.

"Se a pessoa tem o desejo e os recursos disponíveis, parece inconcebível não poder ter o filho desejado. Para a classe média, isso se torna insuportável", afirma a pesquisadora.

Estas situações são muito recorrentes, porque, apesar dos avanços da tecnologia, os insucessos nas tentativas ainda são grandes.

Ênfase ao filho biológico

A pesquisadora destaca, também, a ênfase que os casais dão ao filho biológico.

Em um dos casos acompanhados na pesquisa, a mulher já havia tentado engravidar, não conseguiu, adotou uma criança e continuou insistindo no tratamento.

"A força do laço biológico é muito marcante. Embora haja um discurso de aceitação da adoção, a noção do filho próprio, 'de sangue', ainda é muito presente", ressalta.

Efeitos psicossociais

Outro fator de constrangimento detectado pela pesquisadora é uma espécie de "intromissão" do médico em sua vida íntima.

Os casais prezam muito fatores como a privacidade e a espontaneidade em sua vida íntima.

"A queixa dos casais expressa uma concepção de sexualidade íntima e livre de controle. Assim, o desconforto gerado pelas interferências médicas nesta atividade se traduz como uma invasão de privacidade", esclarece.

A contradição entre a escolha de ter um filho e a subordinação, especialmente das mulheres, aos procedimentos médicos, ficou muito clara nos discursos dos casais estudados.

"O que parece estar em jogo é o constrangimento da liberdade de escolha. A partir do momento em que o casal tem que se subordinar às tecnologias e aos ditames da medicina, há uma quebra da espontaneidade, o que parece contraditório à primeira vista", afirma.

De acordo com Eliane, é importante que estas questões sejam problematizadas tanto no âmbito da experiência individual quanto em termos das políticas públicas, uma vez que há uma expectativa social de acesso às tecnologias reprodutivas, ainda que de forma incipiente, pela via do sistema público de saúde.

"Qualquer novidade tecnológica na área da reprodução assistida precisa ser discutida, já que terá efeito tanto na vida individual quanto na social e coletiva. Os modos como os casais poderão reagir diante da situação com a família, com amigos, no trabalho, com o sistema médico, enfim, todos os efeitos devem ser observados", ressalta.

Fonte: Fiocruz

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