Porém, durante o desenvolvimento cerebral, a grande maioria dessas células é eliminada. Apenas algumas maturam, formando as redes neuronais. Não se sabe ainda por que o organismo gera um número tão grande de células precursoras, se vai eliminá-las depois. Fica uma impressão de desperdício energético enorme. Mas o que parece um desperdício pode simplesmente ser seleção natural: o desenvolvimento cerebral seleciona as células mais aptas e rejeita as outras. No entanto, para que a seleção aconteça é preciso diversidade. Evidentemente, essa diversidade seria impossível caso as células fossem realmente cópias idênticas.
Em 2005, o grupo em que eu trabalhava descobriu que conhecidos “genes saltadores” eram capazes de trocar de posição no genoma cerebral de camundongos (Muotri e colegas, “Nature”, 2005). Essa atividade inesperada em células progenitoras neurais induzia alterações genéticas capazes de alterar a atividade de uma série de genes, aparentemente de uma foram aleatória. As alterações genéticas afetariam as células selecionadas que, por sua vez, alterariam as redes neurais. Essa observação sugere que, caso comprovada em humanos, o que realmente somos é uma contribuição genética dos nossos pais, do ambiente em que vivemos e do acaso.
Apesar da física lidar bem com o “acaso”, na biologia esse conceito nem sempre é bem-vindo. Afinal, como um tecido altamente especializado e coordenado como o cérebro seria capaz de suportar um nível tão grande de incerteza? Aos meus colegas neurocientistas mais deterministas, deixo o seguinte raciocínio: mesmo as máquinas mais complexas precisam de uma certa instabilidade para gerar respostas rápidas, num ambiente em constante transformação. Tome o exemplo de um avião. Quando está no ar, precisa de uma série de sensores que ficam se ajustando a todo momento para que a aeronave entre num estado de aparente estabilidade. Na verdade, o constante ajuste dos flaps nos deixa com essa impressão durante o voo. A realidade é que, se não fosse isso, se o avião fosse 100% estável, ele jamais sairia do chão.
Recentemente, essa atividade dos genes saltadores foi confirmada em humanos (Coufal e colegas, “Nature”, 2009). Obviamente, o impacto de se demonstrar que isso ocorre no cérebro humano é tremendo. Para isso, o grupo usou e abusou das células embrionárias humanas, derivando-as em células progenitoras neurais. Até ai fica-se com a impressão de que um possível artefato em cultura poderia interferir nas análises, diminuindo o entusiasmos do leitor. O experimento mais convincente foi feito em tecidos de cérebro humano, post-mortem. A quantificação da atividade dos genes saltadores em diferentes regiões do cérebro humano sugere que existe uma variação grande entre as regiões analisadas. Não se sabe ainda qual o significado dessa observação.
De uma forma grosseira, estimou-se que existem cerca de 80 alterações genéticas causadas por genes saltadores em cada neurônio do cérebro humano. Esse número é bem maior do valor que eu tinha estimado previamente (Muotri e Gage, “Nature”, 2006) e sugere que o genoma cerebral suporta um nível extraordinário de mutações somáticas.
Geradores de diversidade
Diversas perguntas continuam sem respostas: Por que isso acontece? Por que é mais pronunciado em humanos? Por que é restrito ao sistema nervoso, mais precisamente aos neurônios? Nesse ponto, o que temos é mera especulação. Uma possibilidade seria que a atividade dos genes saltadores faz parte de um mecanismo de geração de diversidade (“Generators Of Diversity”, ou “GOD”). O GOD cerebral teria como função aumentar o espectro cognitivo da espécie para que essa apresente “outliers”, ou indivíduos fora da curva, com capacidades extraordinárias. Um exemplo na espécie humana seria o físico Einstein. Em suporte dessa idéia, digo que uma única colônia de chimpanzés na África tem mais diversidade genética do que todos os humanos do planeta. No entanto, nosso espectro cognitivo é bem mais amplo do que o deles. Essa hipótese também sugere que, quando GOD sofre alguma alteração durante o desenvolvimento cerebral, as redes neurais poderiam ser alteradas de forma brusca, gerando o espectro autista, por exemplo.
Buscar ideias por meio de especulação é uma das tarefas mais interessantes da profissão de um biólogo. As ideias são geradas, discutidas e então procura-se desenhar experimentos que possam confirmar ou não sua hipótese. Acredito que os melhores cientistas são aqueles cujos experimentos são executados de forma a confrontar a própria hipótese.
Fonte: G1
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